Após consolidar seu papel na performance muscular, a creatina passa a ser estudada como potencial aliada do cérebro, mas evidências atuais estão longe de consenso
Por quase três décadas, a creatina foi sinônimo de hipertrofia muscular. Ganhou popularidade nas academias nos anos 1990 e passou a figurar entre os suplementos mais estudados e seguros, reconhecida por aumentar força e resistência em exercícios de alta intensidade. Nos últimos anos, porém, o foco da atenção científica — e comercial — se deslocou: a mesma substância agora é apresentada como capaz de melhorar até o desempenho mental. Será?
“A ciência foi mostrando que o cérebro também depende de energia rápida para funções como memória, raciocínio e atenção”, explica o nutrólogo Diogo Toledo, coordenador do departamento de Nutrologia do Einstein Hospital Israelita. “Essa descoberta abriu um campo novo: se a creatina melhora a disponibilidade energética muscular, poderia ter impacto positivo também em situações de estresse cerebral, fadiga mental ou doenças neurológicas.”
O tema ganhou destaque após a publicação, em 2024, de um estudo alemão na revista Scientific Reports que relatou melhora modesta no desempenho cognitivo de 15 voluntários privados de sono por 21 horas após ingerirem uma dose única e elevada de creatina monoidratada. Os participantes tiveram pequenos ganhos em memória, tempo de reação e raciocínio, além de alterações mensuráveis no metabolismo energético cerebral.
O estudo repercutiu rapidamente nas redes sociais e em portais de saúde, onde passou a circular como suposta evidência de que a creatina “turbina o cérebro”. Médicos, influenciadores e perfis de bem-estar reproduziram o achado de forma simplificada, muitas vezes sem mencionar que se tratava de um estudo pequeno, de curto prazo e conduzido sob condição extrema de privação de sono.
A promessa de um pó incolor, inodoro e insípido capaz de melhorar a força física e mental é tentadora. Mas faltam evidências sólidas de que a creatina cumpra esse segundo papel. “Há receptores que permitem que a creatina ingerida chegue ao sistema nervoso central”, afirma o nutricionista Igor Eckert, cofundador da Reviews, plataforma que analisa estudos científicos.
Mas daí a colocá-la como promessa de uma mente turbinada são outros quinhentos. Autor de uma revisão crítica publicada em outubro no The Journal of Nutrition, Eckert aponta que essa discussão tem sido marcada por viés de confirmação e relaxamento dos critérios de evidência.
Força explosiva
O corpo produz creatina naturalmente, a partir de três aminoácidos — glicina, arginina e metionina — sintetizados no fígado, rins e pâncreas. A substância também está presente em alimentos, principalmente em carnes e peixes. “Ela armazena fosfatos de alta energia que ajudam as células, sobretudo as musculares e cerebrais, a repor energia em situações de esforço intenso ou grande demanda”, explica Toledo.
A síntese endógena cobre cerca de 70% a 80% da demanda diária. O restante vem da dieta, mas dificilmente atinge níveis ideais de saturação. Para obter a quantidade presente em uma única dose de suplemento (3 a 5 gramas), seria preciso comer mais de um quilo de carne bovina por dia. “É como se vivêssemos em um mundo em que o carro produz parte da própria gasolina, mas nunca enche o tanque por completo”, compara Eckert.
Após ser produzida ou ingerida, a creatina circula no sangue e se acumula nos tecidos, principalmente nos músculos, onde atua como tampão energético. Ela libera adenosina trifosfato (ATP), permitindo que o esforço físico intenso dure alguns segundos a mais. “É razoável afirmar que, para quem pratica atividade física com regularidade, suplementar creatina costuma ser uma boa decisão”, diz Eckert. “Mas o maior benefício aparece em modalidades que exigem força explosiva, como levantamento de peso ou corridas curtas.”
Fonte: Diario de Pernambuco



